Com ataque a normas de segurança, aumenta riscos à vida do trabalhador


Agosto registrou uma série de acidentes com mortes ou graves lesões a trabalhadores por todo o Brasil. A queda de uma viga, durante a construção de um frigorífico em Iporã (PR), matou Adalto Alves Cardoso aos 69 anos e feriu outro trabalhador com gravidade. Em Pouso Alegre (MG), Ivan Fidélis, 36 anos, foi soterrado durante uma escavação. O coletor de lixo Marcio Alves de Souza morreu no dia 13 após um capotamento do caminhão em que trabalhava, em Goiânia (GO). Em Curitiba (PR), outro operário da construção civil teve a perna presa em uma máquina de cimento.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil ocupa o 4º lugar mundial em acidentes no trabalho.
Em 2018, de acordo com Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, houve 623,8 mil comunicações de casos envolvendo morte, invalidez ou afastamento por doenças de trabalho no país. Entre 2012 a 2018, mostra a plataforma, o Brasil registrou 16.455 mortes e 4,5 milhões acidentes. No período, os gastos da Previdência com Benefícios Acidentários foram de R$ 79 bilhões.
Os números são assustadores, mas não a ponto de sensibilizar o governo Jair Bolsonaro (PSL). Ao contrário, sob o pretexto de que seria preciso “desburocratizar” o regramento trabalhista, o presidente vem promovendo ou apoiando uma série de ações que afetam ainda mais a saúde e a vida dos trabalhadores.
Entre elas, está o esvaziamento ou a extinção das 36 Normas Reguladoras (NRs) consolidadas ao longo de quatro décadas de debates e estudos sobre proteção no ambiente de trabalho. A mudança nas NRs foi anunciada em maio por Bolsonaro, com o alegado objetivo de “simplificar as regras e melhorar a produtividade”.
O avanço sobre a regulamentação é uma forma de dizer aos agentes públicos que possuem a competência legal de proteger a vida dos trabalhadores para que “saiam do cangote dos empresários”.
A primeira NR revogada foi a de número 2. Com a medida, o empresário não precisa mais provar, antes de abrir o negócio, que seu estabelecimento segue as normas de segurança para os trabalhadores.
Outras três NRs estão sendo modificadas também no sentido de facilitar a vida do empregador, aumentando os riscos para os empregados: a NR1, a NR3 e a NR12.
As mudanças previstas na NR12 são as que mais preocupam, já que vão flexibilizar as regras de segurança para ambientes com máquinas e equipamentos – responsáveis por grande número de acidentes, mortes e mutilações.
Já a alteração na NR1 libera o empresário de dar treinamento ao trabalhador toda vez que ele mudar de função; enquanto a mexida na NR3 vai limitar o poder de atuação do delegado do trabalho de interditar uma obra, por exemplo, quando ele identificar risco iminente aos operários.
A gravidade da mudança, no caso da NR3, se expressa no fato de ela acabar com a possibilidade do Estado chegar e agir antes que o acidente ou o adoecimento ocorra, segundo explica Luiz Scienza, auditor-fiscal do Trabalho, professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da UFRGS e vice-presidente do Instituto Trabalho Digno.
Para Scienza, as alterações propostas na NR3 tendem a tornar inviável aplicar uma medida provisória de paralisação de atividades de alto risco.
“Hoje, em situações extremas, o auditor pode embargar obras, empreendimentos etc. [Com as mudanças], em lugar de se fazer o embargo, o auditor vai ter que adotar uma série de medidas anteriores, cálculos, estimativas de riscos, e enquanto isso os trabalhadores continuam suas atividades e a vivenciar os riscos extremos verificados. Isso não tem nenhum sentido, não existe em lugar nenhum do planeta. É algo completamente fora da realidade”, diz.
Escravidão
“Essa nova normatização e sistemática certamente adoecerá, amputará e matará mais trabalhadores. O lucro também é importante, claro, mas não pode desprezar os outros aspectos. Quando se trata de proteção à vida, será sempre prioridade, conforme determina a nossa Constituição Federal”, afirma Carlos Silva, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait).
Para justificar as alterações, Bolsonaro escreveu em sua conta no Twitter: “Governo federal moderniza as normas de saúde, simplificando, desburocratizando, dando agilidade ao processo de utilização de maquinários, atendimento à população e geração de empregos”.
O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) questiona as declarações de Bolsonaro – utilizadas também para sustentar as reformas da Previdência e Trabalhista –, de que o trabalhador precisa fazer uma escolha: ou ele tem direitos, ou tem emprego.
“Isso é muito perigoso. O Brasil ocupa a 4ª posição no mundo em acidentes de trabalho. As principais normas foram elaboradas no governo militar, nas décadas de 60, 70. É um retrocesso tão grande, que até a possibilidade de trabalho análogo à escravidão vai retornar. Estão falando até em flexibilizar a noção de trabalho escravo. É uma lógica extremamente perversa.”
O jornalista Leonardo Sakamoto, especializado em direitos humanos e diretor-presidente da ONG Repórter Brasil, também contesta a lógica presidencial.
“Bolsonaro tem trabalhado com uma falsa dicotomia entre empregos e direitos. Não é a diminuição de direitos que gera empregos. O que gera emprego é o crescimento econômico. Pode criar emprego desregulamentando? Até pode. Mas em nome de quê? Que tipo de emprego se vai criar?”, pergunta.
Mudar para trás
Carlos Silva, presidente do Sinait, destaca a relevância das normas alteradas e seus impactos. “A NR-1 é de extrema importância, estruturante. E a NR-12 é importantíssima, dizendo respeito a um quadro grave e caótico de acidentes com máquinas e equipamentos”. De acordo com Silva, “as alterações já promovidas alcançam quase a totalidade dos ambientes de trabalho e quase a totalidade dos trabalhadores e trabalhadoras do país”.
O presidente do Sinait avalia que “é muito grave” a alteração do caráter (antes deliberativo e mandatório, agora apenas consultivo e eventual) da Comissão Tripartite que respondia pelas normas – bem como o fim das atividades das comissões temáticas.
“Na prática agora, sempre que o governo discordar, acabará por decidir conforme suas convicções. Só ouvirá e respeitará quando convergir – o que é grave, extremamente grave”, afirma.
Silva acrescenta que não é verdade que as normas estejam ultrapassadas, como faz parecer o discurso oficial, elas sofrem atualização permanentemente, “há décadas.”
“As normas são revisadas o tempo todo”, corrobora Sakamoto. “Elas refletem a realidade, bem como o acordo tripartite. Quando há uma evolução, o que é natural, quando há necessidade, atualiza-se a norma, ou até se cria uma. Isso é bastante usual. O governo está fazendo essas alterações de forma atropelada, o que já é questionável, e está fazendo isso em nome dos empregadores”.
Para Sakamoto, o correto seria pensar também em nome dos trabalhadores e, ainda, do Estado, de forma consensual e dentro da legalidade. “De forma atropelada, você pode fazer muita coisa ruim.”
Scienza reforça o ponto: “As NRs de Saúde e Segurança do Trabalho tornam concretos direitos e garantias constitucionais. O atual governo entrou com uma disposição de mudar tudo. As normas foram classificadas como bizantinas e hostis às empresas, o que não corresponde à realidade nem em um aspecto nem no outro”.
De acordo com o dirigente do Instituto Trabalho Digno, “no caso da NR-1, por exemplo, as alterações atingem direitos internacionais já consagrados, protegidos por normas e convenções da OIT, a Organização Internacional do Trabalho. É uma nova norma que atenua, minimiza, transforma o direito de recursa do trabalhador a não realizar uma atividade que o coloque em risco numa mera comunicação de risco ao superior. [O fim da regra] é uma novidade mundial. Isso não existe em lugar algum do planeta.”
Fonte: Brasil de Fato

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