Horas extras em excesso. Anos e anos sem
férias. A falta de tempo para a família, lazer e estudo tem levado
trabalhadores à Justiça para pedir indenização por um novo tipo de dano: o
existencial. Normalmente negado em primeira instância, o pedido vem sendo
aceito em tribunais regionais do trabalho (TRTs) e há pelo menos um precedente
do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
No TRT do Rio Grande do Sul,
duas turmas já reconheceram o direito a ex-empregados do Walmart, obrigados a
cumprir longas jornadas de trabalho. Para o relator de um dos processos, o juiz
convocado Raul Zoratto Sanvicente, da 2ª Turma, "há dano existencial
quando a prática de jornada excessiva por longo período impõe ao empregado um
novo e prejudicial estilo de vida, com privação de direitos de personalidade,
como o direito ao lazer, à instrução, à convivência familiar".
No caso, um chefe de setor
alegou que, durante pouco mais de cinco anos - entre junho de 2004 e outubro de
2009 -, realizou por todos os dias, à exceção de dois domingos por mês, jornada
de 13 horas, chegando ao trabalho às sete horas da manhã e saindo somente por
volta das oito horas da noite. Em primeira instância, o pedido foi indeferido.
O juiz entendeu que o fato geraria direito apenas à reparação material, ou
seja, o pagamento das horas trabalhadas.
No TRT, porém, o relator
considerou que a prática reiterada da rede de supermercados deveria ser coibida
por "lesão ao princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana". "Entender que a prática reiterada (como é público e notório
no caso da reclamada) de obrigar aos empregados o cumprimento de jornadas
diárias além do mínimo permitido em lei deve gerar apenas o pagamento de horas
extras é atribuir um olhar monetarista, inadmissível em se tratando de direitos
sociais", diz em seu voto.
Quanto ao valor da
indenização, o relator considerou que deveria atender "também o caráter
pedagógico e ter em conta o porte do agente". Assim, estabeleceu os danos
existenciais em R$ 60 mil. "Sua vida no período no qual trabalhou para a
reclamada resumia-se em alimentar-se, dormir e trabalhar", afirma
Sanvicente.
Em outro caso envolvendo o
Walmart, porém, o valor estipulado foi menor, de R$ 10 mil. No processo
analisado pela 1ª Turma do TRT gaúcho, a trabalhadora alegou que a jornada de
12 horas em seis dias por semana, com intervalo de 30 minutos, deixou pouco
tempo para os compromissos particulares, dentre eles o convívio familiar.
Por meio de nota, o Walmart
Brasil informa "que cumpre integralmente a legislação trabalhista em todas
as localidades onde atua e que preza pelo respeito a todos os seus
funcionários". A companhia já recorreu das decisões.
No Paraná, a Spaipa S.A.
Indústria Brasileira de Bebidas, fabricante e distribuidor Coca- Cola, foi
condenada em segunda instância a pagar indenização de R$ 10 mil a um motorista,
obrigado a fazer horas extras além do permitido por lei (duas horas). Ele
argumentou que "a rotina diária, premida por uma longa e exaustiva jornada
de trabalho, frustraram seu projeto de vida, que era voltar a estudar e montar
seu próprio negócio".
A relatora do caso,
desembargador Ana Carolina Zaina, da 2ª Turma do TRT do Paraná, acatou o
argumento do autor. Para ela, a excessiva carga de trabalho foi um
"empecilho ao livre desenvolvimento do projeto de vida do trabalhador e de
suas relações sociais". Além dos danos existenciais, o trabalhador obteve
danos morais de R$ 5 mil por ter sofrido dois assaltos. Por nota, a Spaipa
informa que irá recorrer da decisão.
Em seu voto, a magistrada
aproveitou ainda para explicar as diferença entre o dano moral e o existencial.
"O dano moral se refere ao sentimento da vítima, de modo que sua dimensão
é subjetiva e existe. Por outro lado, o dano existencial diz respeito 'in re
ipsa' às alterações prejudiciais no cotidiano do trabalhador, quanto ao seu
projeto de vida e suas relações sociais, de modo que sua constatação é
objetiva."
"É um direito de
difícil comprovação", diz o advogado Daniel Chiode, do escritório
Gasparini, De Cresci e Nogueira de Lima, que acompanha mais de cem ações contra
empresas com pedidos similares. "Não perdemos em nenhuma. Não é um direito
fácil de emplacar."
Para a advogada Dânia Fiorin
Longhi, do Fiorin Longhi Sociedade de Advogados, os danos existenciais também
têm um fim pedagógico, para evitar que o empregador continue a agir dessa forma
com seus empregados. "O homem é um ser social e tem o direito a manter
relações amorosas, de amizade e familiares. Ter uma vida fora do
trabalho", afirma.
A função
"pedagógico-punitiva" foi levada em consideração pelo TST, que
concedeu indenização de R$ 25 mil a uma economista de Campo Grande que ficou
dez anos sem usufruir dos períodos de férias. Ela teve vínculo de emprego
reconhecido com a Caixa de Assistência dos Servidores do Estado de Mato Grosso
do Sul (Cassems). Para a 1ª Turma, "a lesão decorrente da conduta patronal
ilícita que impede o empregado de usufruir das diversas formas de relações
sociais fora do ambiente de trabalho (familiares, atividades recreativas e
extralaborais) viola o direito da personalidade do trabalhador e constitui o
chamado dano existencial". O caso já transitou em julgado.
Por nota, a Cassems informa
que, com o reconhecimento do vínculo, "foram desconsideradas as
peculiaridades da forma de contratação originária (autônoma), como a ausência
de horário fixo para o trabalho". De acordo com a entidade, a economista
"poderia se ausentar por períodos por si mesma estabelecidos, seja para
descanso como para viagens e passeios".
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