As quatro vacas de que Francisco das Chagas cuidava foram atropeladas
pelo trem da Vale quando iam tomar água. O morador da zona rural de Buriticupu,
interior do Maranhão, pediu uma indenização, mas ele conta que um funcionário
da empresa ameaçou processá-lo porque o trem podia ter descarrilado.
Chagas não foi acionado daquela vez, em outubro do ano passado. Mas a
Vale o processou em maio deste ano por outro motivo: ele escreveu uma carta. No
texto, ele e outros cento e onze moradores da vila Casa Azul pediam um kit de
irrigação, um pequeno trator, um posto de saúde e o aumento da rede elétrica.
O pedido foi feito após trinta anos de uma convivência conflituosa com a
empresa, que opera a ferrovia desde os anos 80. Neste período, os moradores da
Casa Azul contam que residências racharam por causa do trem, poços artesianos
desmoronaram, animais foram atropelados, sua terra foi contaminada e seu rio
assoreado. Com as obras de duplicação, os problemas pioraram. As ruas do
assentamento, localizado na beira da rodovia, deixaram de ser tranquilas e
agora são atravessadas por caminhões e máquinas pesadas quase
ininterruptamente.
Diante de todos esses problemas, a Vale não os ajudou. Ao invés disso,
registrou um boletim de ocorrência contra os moradores e processou as lideranças
comunitárias. Agora, eles estão proibidos de protestar e, caso o façam, deverão
pagar uma multa de cinco mil reais por cada dia. A justificativa para o
processo foi o final da carta enviada pelos moradores, em que eles diziam que,
caso as reivindicações não fossem atendidas, estavam decididos “a interditar a
passagem de qualquer veículo que utiliza as estradas dentro da nossa área”.
Além de Chagas, a Vale processou ao menos oito moradores da região que
reivindicavam, por meio de cartas e protestos pacíficos, compensações ou
empregos nas obras. Eles agora servem de exemplo a outros moradores que queiram
protestar contra a Vale em qualquer um dos outros municípios atravessados pelos
trilhos da empresa.
Em resposta enviada a Repórter Brasil por e-mail, a Vale afirma que “não
ingressa na justiça para proibir protestos mas, sim, para garantir a
integridade da EFC [Estrado de Ferro Carajás] e evitar ameaças e ações que
possam resultar em sua paralisação.” A empresa também afirma que desconhece o
caso das vacas de Chagas, mas que os proprietário são responsáveis por “evitar
possíveis fugas [de animais] que possam gerar risco à operação ferroviária.”
O tamanho do problema
De grande importância para Chagas, as quatro vacas e o kit de irrigação
significam pouco para a empresa que corta sua terra. A ferrovia carrega a
produção de ferro da maior mina a céu aberto do mundo, no Pará, aos portos no
Maranhão. Ao menos 100 milhões de toneladas do minério passam anualmente por
Buriticupu, em trens que chegam a medir 3,5 quilômetros de comprimento e
carregam o equivalente a mais de mil carretas.
Ao mesmo tempo em que duplica a ferrovia, a Vale está expandido o seu
complexo no Pará. A mina de ferro S11D, obra de 19 bilhões de reais, deve
duplicar a produção de minério escoado pela ferrovia.
No começo, a população pobre de Buruticupu achou que essas obras trariam
desenvolvimento à cidade e novos empregos. Mas isso mudou conforme as
comunidades viram o desdobramento da obra. Segundo levantamento da ONG Justiça
nos Trilhos, foram três manifestações em 2012, seis em 2013 e 15 em 2014.
Para tentar conter estas manifestações, a Vale usou um dispositivo legal
chamado interdito proibitório. Na prática, o mecanismo impede protestos que
ainda nem aconteceram. A empresa pediu multa diária de 50 mil reais para quem
protestasse contra ela. Os juízes acataram os pedidos, mas diminuíram a multa
para um décimo do valor.
Com os processos, a Vale não só proibiu os moradores de protestar, mas
de fazê-lo dentro das suas próprias terras e de vias públicas. Segundo a ONG
Justiça nos Trilhos, as estradas de terra fazem parte de assentamentos do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), onde parte dos
manifestantes moram.
A Vale alega em sua resposta que “tem o direito de pedir a liberação de
qualquer via que dê acesso à ferrovia”. Em sua peça de acusação, a empresa
também argumenta que o fechamento de estradas por moradores do interior do
Maranhão poderia ter graves consequências a toda a economia do Brasil. “A
ofensa à operação da ferrovia também pode representar enorme prejuízo à balança
comercial brasileira, considerando os diversos contratos com siderúrgicas no
exterior e com as indústrias da agricultura, as quais, se não forem cumpridas,
acarretarão prejuízos incalculáveis.”
A mineradora também alega que tem mantido um percentual elevado de mão
de obra local. Segundo a empresa, do total de 13 mil empregados desde o início
das obras, 87% são maranhenses.
Cadastro para ser processado
A estrada que atravessa a comunidade de Pau Ferrado foi um dos lugares
públicos onde a Vale proibiu os protestos. Como a vila está há cerca de vinte
quilômetros da ferrovia, a empresa considera que ela não sofre impactos da
obra, apesar de caminhões passarem constantemente pelo meio das suas terras.
Em busca de emprego, trinta pessoas fecharam a estrada por onde passam
os caminhões da Vale. “Tem um bocado de gente precisando de trabalho. Roubar
nós não vamos, mas temos que sustentar nossa família. Por isso, nós trancamos o
acesso,” diz Rogério Sousa Santos, morador da vila. Eles só tiveram esperanças
quando um representante da Vale veio encontrá-los, ainda com a estrada fechada.
“Ele pediu nome completo e documento de todo mundo. Mas com três dias, chegou
um processo,” diz Santos.
Depois de ganhar um processo, Santos ganhou um emprego. Agora recebe mil
e duzentos reais mensais para trabalhar como sinalizador na Camargo Correa,
terceirizada responsável pela construção dos trilhos. Na situação em que se
encontra, conta, não tinha como recusar o trabalho daqueles que o processam.
Chagas, por sua vez, está resignado por não conseguir o que pediu a
Vale. “Agora, o que a gente queria mesmo é que retirassem esse processo que
movem contra a gente”, conta. Questionado se a empresa já trouxe algo bom à
comunidade onde vive, Chagas disse que nunca chegou benefício algum. Mas logo
em seguida se corrige, e lembra a única vez que um funcionário da Vale trouxe
algo. “Teve uma vez que eu cobrei, e eles trouxeram um lápis, uma caneta e uma
borrachinha para cada criança. Foi só isso que chegou até hoje.”
*Reportagem publicada originalmente no Repórter Brasil
* Foto: Trem de ferro passa ao lado de Casa Azul. Crédito: Piero Locatelli
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