Fonte: O Globo
Eles chegam a ter até dez cartões de crédito. Usam o rotativo de cada um deles, como se fosse um complemento da renda, sem pensar nos juros. Também não se importam em ultrapassar o limite do cheque especial quando o orçamento aperta, sobra mês, e falta salário. Alguns têm dívidas que equivalem a 100% do salário, o que faz com que percam a capacidade de se sustentar.
Os especialistas em finanças classificam esse grupo como superendividados. Em momentos de crise da economia, como o atual, com perda de renda, juros e inflação em alta, mais gente corre o risco de entrar para essa turma, alertam especialistas. E isso não depende da classe social, mas sim do comportamento em relação às finanças.
— Sempre aparece mais gente com problemas de superendividamento em momentos de conjuntura econômica adversa. Este ano, temos recebido mais jovens, gente que acabou de entrar no mercado de trabalho, recebeu oferta maior de crédito e acabou utilizando sem nenhum critério — diz Ivete Maria Ribeiro, diretora executiva do Procon de São Paulo, que mantém um Núcleo de Superendividados.
ROTATIVO É UM DOS VILÕES
O especialista em investimentos do banco Ourinvest, Mauro Calil, alerta que a principal porta de entrada para o superendividamento é o uso indiscriminado do rotativo do cartão de crédito e do limite do cheque especial. Quem utiliza essas modalidades de crédito pré-aprovado como complemento da renda tem mais chances de se tornar um superendividado. Não por acaso, são as linhas que cobram as maiores taxas de juro do mercado.
Uma simulação feita pelo diretor de estudos e pesquisas econômicas da Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Anefac), Miguel Ribeiro de Oliveira, mostra que um cliente de banco que usa o limite de R$ 1 mil do cheque especial durante um ano vê sua dívida se transformar em R$ 3.321,17. Os juros anuais equivalem a 232%. Para quem utiliza os mesmos R$ 1 mil no rotativo do cartão de crédito, sem fazer nem o pagamento mínimo, o estrago é ainda maior. Em três anos, a dívida se transforma em impressionantes R$ 97.609,15, o bastante para comprar um carro de luxo.
— Parece óbvio, mas muita gente não faz o básico: poupar uma parte do salário para emergências, como uma doença ou perda de emprego, e gastar menos do que ganha — diz Calil.
Um funcionário público de 52 anos, que prefere não se identificar, nem se lembra de quando começou a utilizar o limite do cheque especial como complemento da renda. Ele conta que chegou a dever para dez bancos. Quitava parte da dívida com uma instituição, mas se enrolava com outra. Chegou a um ponto em que perdeu o controle. Entrou em depressão e foi afastado do trabalho. Hoje, nem sabe exatamente quanto deve, mas passa de R$ 300 mil. Na semana passada, ele estava em busca de ajuda no Núcleo de Superendividados do Procon-SP e até ganhou diploma de participação na palestra Dúvidas e Dívidas.
— Fiquei endividado e recolhido. Agora resolvi procurar ajuda — diz o funcionário público.
O bom senso recomenda que as pessoas não tenham dívidas acima de 30% de sua renda, dizem os especialistas. Também é essencial ter uma poupança que fique, no mínimo, entre seis meses e um ano do salário, diz Patrícia Cotti, coordenadora da Academia do Varejo, do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e Mercado de Consumo (Ibevar). O montante permite quitar dívidas e manter o sustento, em caso de desemprego, sem usar o cheque especial. Segundo ela, o ideal é que a pessoa guarde todo mês entre 10% e 15% do salário para chegar a essa reserva.
— Quem faz planejamento financeiro tem risco menor de se tornar superendividado — diz Patrícia.
Uma pesquisa da SPC Brasil, empresa que acompanha operações de crédito realizadas por empresas, e do portal Meu Bolso Feliz, mostrou que existe outro caminho para o superendividamento. O levantamento, feito em todo o país, apontou que 79% dos entrevistados fazem compras usando crediário das lojas, mas nem sempre sabem quanto pagam de juros.
— O que importa é se o valor da parcela cabe no bolso, não o valor final do produto. Com isso, muita gente perde a noção dos gastos, compra por impulso e acaba no superendividamento — diz a economista-chefe do SPC Brasil, Marcela Kawauti.
MUDANÇA DE COMPORTAMENTO
Para ela, quem chega a essa situação precisa de uma mudança radical de comportamento. Parar de consumir acima de sua capacidade e até vender coisas, como o carro, para quitar dívidas com juros altos, antes que estas virem uma bola de neve. Quem não consegue quebrar esse ciclo pode buscar ajuda de especialistas. No Rio de Janeiro, a Comissão de Tratamento e Prevenção ao Superendividamento, que faz parte do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública, presta atendimento a superendividados. Em São Paulo, o Procon ajuda até a negociar as dívidas com os credores. No segundo semestre, esse atendimento será feito também pela internet.
— Nossa expectativa é que a procura triplique — diz Diógenes Donizete, coordenador do Núcleo de Tratamento do Superendividamento.
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