Em
palestra no Festival of Dangerous Ideas em Sydney, o escritor e jornalista
norte-americano David Simon disse que o capitalismo perdeu a visão de seu pacto
social
por The Observer
Moradores do Brooklyn, em
Nova York, recebem alimentos de missão religiosa em 5 de dezembro. O corte de
gastos por parte do governo federal dificultou o acesso de famílias mais pobres
à alimentação
Os
Estados Unidos são hoje um país totalmente dividido no que se refere a
sociedade, economia, política. Existem definitivamente dois EUA. Eu vivo em um,
em uma quadra de Baltimore, no estado de Maryland, que faz parte da versão
viável dos EUA, a parte dos EUA conectada com a sua própria economia, onde
existe um futuro plausível para as pessoas ali nascidas. A cerca de 20
quarteirões de distância existe outro país totalmente diferente. É incrível
como temos pouco a ver uns com os outros, e, no entanto, vivemos em grande
proximidade.
Não
há arame farpado ao redor de Baltimore Oeste ou de Baltimore Leste, ao redor de
Pimlico, áreas de minha cidade que foram totalmente divorciadas da experiência
americana que conheço. Mas poderia haver. De certa forma nós conseguimos
caminhar para dois futuros diferentes, e creio que estamos vendo cada vez mais
disso no Ocidente. Não acho que seja exclusivo dos EUA.
Creio
que nos aperfeiçoamos muito na tragédia e estamos chegando lá mais depressa que
muitos outros lugares talvez ainda um pouco mais racionais. Mas minha ideia
perigosa envolve um homem que foi deixado de lado no século XX e quase parecia
ser o final da piada do século XX: um homem chamado Karl Marx.
Não
sou marxista no sentido de que não acredito em uma resposta clínica muito
específica do marxismo para nossos problemas econômicos. Marx era muito melhor
ao fazer diagnósticos do que como clínico. Ele era bom em descobrir os erros ou
o que poderia estar errado com o capitalismo se não cuidassem dele, e muito
menos verossímil no aspecto de como se poderia solucionar isso.
Se
você leu O Capital, ou tem
as Cliff Notes, sabe que suas imagens de como o
marxismo clássico – de como sua lógica funcionaria quando aplicada – mais ou
menos evoluem para absurdos tais como o encolhimento do Estado e platitudes
semelhantes. Mas ele foi realmente arguto sobre o que dá errado quando o
capital vence de maneira inequívoca, quando ele consegue tudo o que quer.
Essa
talvez seja a tragédia definitiva do capitalismo em nossa era, que ele alcançou
a predominância sem consideração pelo pacto social, sem estar conectado a
qualquer outra métrica de progresso humano.
Nós
entendemos o lucro. Em meu país, medimos as coisas pelo lucro. Escutamos os
analistas de Wall Street. Eles nos dizem o que devemos fazer a cada trimestre.
O relatório trimestral é Deus. Vire-se de frente para Deus. Vire-se de frente
para Meca, você sabe. Você atingiu seu número? Você não atingiu seu número?
Você quer seu bônus? Você não quer seu bônus?
E
essa ideia de que o capital é a métrica, de que o lucro é a métrica pela qual
mediremos a saúde de nossa sociedade, é um dos enganos fundamentais dos últimos
30 anos. Eu a dataria em meu país exatamente em 1980, e ela venceu.
O
capitalismo arrasou com o marxismo no final do século XX e predominou em todos
os sentidos. Mas a grande ironia disso é que a única coisa que realmente
funciona não é ideológica, é impura, tem elementos dos dois argumentos e na
verdade nunca alcança algum tipo de perfeição partidária ou filosófica.
É
pragmática, inclui os melhores aspectos do pensamento socialista e do
capitalismo de livre mercado. E funciona porque não deixamos que ela funcione
totalmente. E essa é uma ideia dura de pensar – que não existe uma mágica que
nos tire da confusão na qual nos metemos. Mas que confusão!
Depois
da Segunda Guerra Mundial, o Ocidente emergiu com a economia norte-americana
saindo de sua extravagância do tempo de guerra, surgindo como o melhor produto.
Era o melhor produto. Funcionava melhor. Estava demonstrando seu poder não
apenas em termos do que fez durante a guerra, mas em termos de como era fácil
criar riqueza em massa.
Além
disso, oferecia muito mais liberdade e fazia a única coisa que garantia que o
século XX seria – e perdoem o tom chauvinista disto – o século norte-americano.
Ele
pegou uma classe trabalhadora que não tinha uma renda perceptível no início do
século, que trabalhava por salários de subsistência. E a transformou em uma
classe de consumidores que não apenas tinha dinheiro para comprar todas as
coisas de que precisavam para viver, como o suficiente para comprar um monte de
porcarias que eles queriam mas de que não precisavam. Essa foi a máquina que
nos conduziu.
Não
era apenas que podíamos fornecer coisas, ou que tivéssemos as fábricas, o
know-how ou o capital. Nós criávamos nossa própria demanda, e começamos a
exportar essa demanda por todo o Ocidente. E o padrão de vida possibilitou
fabricar coisas em um ritmo incrível e vendê-las.
E
como fizemos isso? Fizemos não cedendo a qualquer lado. Esse foi o novo acordo.
Essa foi a grande sociedade. Essa foi toda a discussão sobre negociação
coletiva e dissídios, e foi uma discussão que significava o seguinte: nenhum
lado pode vencer.
Os
trabalhadores não conseguem vencer todos os seus argumentos, nem o capital. Mas
é na tensão, é na verdadeira luta entre os dois, que o capitalismo realmente se
torna funcional, que ele se torna algo em que toda camada da sociedade tem um
interesse, que todas compartilham.
Os
sindicatos foram realmente importantes. Os sindicatos faziam parte da equação.
Não importava se eles vencessem o tempo todo, não importava se eles perdessem o
tempo todo, apenas importava que eles tinham de vencer algumas vezes. Mais:
eles tinham de armar uma briga e tinham de discutir pela demanda e a equação e
pela ideia de que os trabalhadores não valiam menos, eles valiam mais.
Afinal,
abandonamos isso e acreditamos na ideia da transmissão gradual da riqueza e na
ideia da economia de mercado. Em suma, o mercado sabe melhor, a um ponto em que
hoje o libertarismo em meu país está realmente sendo levado a sério como uma
forma inteligente de pensamento político. Isso me surpreende. Mas é assim. As
pessoas estão dizendo que não preciso de nada além de minha capacidade de
lucrar. Não estou conectado à sociedade. Não me importa como a estrada foi
construída, não me importa de onde vem o bombeiro, não me importa quem educa as
crianças que não são meus filhos. Eu sou eu. É a vitória do ego. Eu sou eu,
ouçam-me rugir.
Surpreende-me
que tenhamos chegado a este ponto, porque basicamente, ao vencer sua vitória,
ao ver aquele Muro cair e ver a viagem do antigo Estado stalinista em direção
ao nosso modo de pensar em termos de mercados ou de ser vulnerável, você teria
pensado que tivéssemos aprendido o que funciona. Em vez disso, decaímos ao que
só pode ser descrito como ganância. Isto é apenas ganância. É uma incapacidade
de ver que todos estamos conectados, que a ideia de dois Estados Unidos é
implausível, assim como de duas Austrálias, duas Espanhas ou duas Franças.
As
sociedades são exatamente o que elas parecem. Se todo mundo estiver empenhado e
se todo mundo apenas acreditar que tem "uma parte", não quer dizer
que todos vão receber a mesma quantia. Não significa que não haverá pessoas que
são os capitalistas de risco que pretendem ganhar mais. Não é cada um segundo
suas necessidades ou algo que seja puramente marxista, mas que todo mundo sinta
que "se a sociedade tiver êxito, eu terei êxito, não ficarei para
trás". E não existe uma sociedade no Ocidente hoje, neste momento, que
seja capaz de sustentar isso para toda a sua população.
Assim,
em meu país estamos vendo um show de horrores. Estamos vendo uma retração em
termos de renda familiar, o abandono de serviços básicos como a educação
pública, a educação pública funcional. Vemos a subclasse caçada por meio de uma
suposta guerra às drogas perigosas que é na verdade apenas uma guerra contra os
pobres e nos transformou no Estado mais encarcerante da história da humanidade.
Falo em termos dos simples números de pessoas que colocamos nas prisões
norte-americanas e da porcentagem de norte-americanos que colocamos nas
prisões. Nenhum outro país na face da Terra prende pessoas no número e no ritmo
em que o fazemos.
Tornamo-nos
algo diferente do que reivindicamos no sonho americano, e tudo por causa de
nossa incapacidade básica de compartilhar, de sequer considerar um impulso
socialista.
"Socialismo"
é um palavrão em meu país. Tenho de fazer essa ressalva no início de cada
palestra: "Oh, aliás, não sou marxista, vocês sabem". Vivi ao longo
do século XX. Não acredito que uma economia dirigida pelo Estado possa ser tão
viável quanto o capitalismo de mercado para produzir riqueza em massa. Não
acredito.
Estou
totalmente comprometido com a ideia de que o capitalismo tem de ser o modo como
geraremos riqueza em massa no próximo século. Essa discussão terminou. Mas a
ideia de que não estará casado com um pacto social, de que a distribuição dos
benefícios do capitalismo não incluirá todo mundo da sociedade em medida
razoável, isso é incrível para mim.
E
assim o capitalismo está prestes a arrancar a derrota das presas da vitória com
sua própria mão. Esse é o fim surpreendente desta história, a menos que
revertamos o rumo. A menos que levemos em consideração, senão os remédios de
Marx, pelo menos o diagnóstico. Ele viu o que aconteceria se o capital
triunfasse de modo inequívoco, se conseguisse tudo o que queria.
E
uma das coisas que o capital queria inequivocamente e com certeza é a
diminuição da mão-de-obra. Eles queriam que a mão-de-obra fosse diminuída
porque a mão-de-obra é um custo. E se a mão-de-obra for diminuída, vamos
traduzir: em termos humanos, significa que os seres humanos valem menos.
A
partir desse momento, a menos que revertamos o rumo, o ser humano médio vale
menos no planeta Terra. A menos que levemos em conta o fato de que talvez o
socialismo e o impulso socialista deva ser novamente abordado; ele tem de ser
casado como era casado nos anos 1930, 40 e até nos 50, com a máquina que é o
capitalismo.
Confundir
o capitalismo com uma planta detalhada para se construir uma sociedade me
parece uma ideia realmente perigosa, de uma maneira ruim. O capitalismo é uma
máquina notável para produzir riqueza. É uma grande ferramenta para se ter na
caixa de ferramentas se você estiver tentando construir uma sociedade e quiser
que essa sociedade progrida. Você não desejaria avançar neste ponto sem ela.
Mas não é uma planta para se construir a sociedade justa. Existem outras
métricas além do relatório trimestral de lucros.
A
ideia de que o mercado solucionará as coisas como preocupações ambientais, como
nossas divisões raciais, nossas distinções de classe, nossos problemas com a
educação e inclusão de uma geração de trabalhadores na economia depois de outra
quando essa economia está mudando; a ideia de que o mercado vá atender a todas
as preocupações humanas e ainda maximizar os lucros é juvenil. É uma ideia
juvenil e está sendo defendida em meu país apaixonadamente e estamos descendo
pelo ralo. E isso me aterroriza porque fico incrédulo ao ver como ficamos à
vontade ao nos absolvermos do que é basicamente uma opção moral. Estamos todos
juntos nisto ou não?
Se
você visse o fracasso que foi, e é, a luta sobre algo tão básico quanto a
política de saúde pública em meu país nos últimos anos, imagine a ineficácia
que os norte-americanos vão oferecer ao mundo sobre algo realmente complexo
como o aquecimento global. Não podemos nem conseguir atendimento de saúde para
nossos cidadãos em um nível básico. E o argumento se resume a: "Maldito
presidente socialista. Ele pensa que vou pagar para manter outras pessoas
saudáveis? Isso é socialismo, filho da mãe".
O
que você pensa que é o seguro-saúde em grupo? Você sabe que pergunta a esses
sujeitos: "Você tem seguro-saúde em grupo onde você...?" "Oh,
sim, tenho..." você sabe, "minha firma de advocacia..." Assim,
quando você fica doente você pode pagar pelo tratamento.
O
tratamento vem porque você tem pessoas suficientes em sua firma de advocacia,
de modo que você pode ter seguro-saúde suficiente para elas se manterem
saudáveis. Assim as tabelas de prêmios e riscos funcionam, e vocês todos,
quando ficam doentes, podem ter os recursos para sarar porque contam com a
ideia do grupo. Sim. E eles balançam as cabeças, e você diz: "Irmão, isso
é socialismo. Você sabe que é".
E...
você sabe quando você diz: "Está bem, vamos fazer o mesmo que fazemos para
sua firma de advocacia, mas vamos fazer para 300 milhões de norte-americanos e
vamos torná-lo acessível a todo mundo dessa maneira. E sim, isso significa que
você estará pagando para os outros caras da sociedade, da mesma maneira que
você paga para os outros caras da firma... Os olhos deles brilham. Você vê que
eles não querem ouvir isso. É demais. Demais contemplar a ideia de que todo o
país poderia na verdade estar conectado.
Por
isso fico surpreso de que ainda hoje eu esteja aqui de pé dizendo que talvez
queiramos recuperar esse sujeito Marx do qual estávamos rindo, senão por suas
prescrições, pelo menos pelo retrato que ele fez do que é possível se você não
mitigar a autoridade do capitalismo, se você não abraçar alguns outros valores
de esforço humano.
E é
basicamente disso que se tratava The
Wire, a série de TV. Era sobre pessoas que valiam menos e não eram mais
necessárias, como talvez 10 ou 15% do meu país não são mais necessários para a
operação da economia. Era sobre eles tentando resolver, por falta de um termo
melhor, uma crise existencial. Em sua irrelevância, sua irrelevância econômica,
eles continuavam não obstante em campo, ocupando este lugar chamado Baltimore,
e eles tinham de sobreviver de alguma forma.
Esse
é o grande show de horrores. O que vamos fazer com todas essas pessoas que
conseguimos marginalizar? Era mais ou menos interessante quando se tratava
apenas de raça, quando você podia fazer isso com base nos temores raciais das
pessoas, e eram apenas os negros e pardos nas cidades norte-americanas que
tinham os índices mais altos de desemprego e de dependência de drogas, eram
marginalizados e tinham sistemas escolares péssimos e falta de oportunidades.
E é
interessante nesta última recessão ver a economia encolher e começar a atirar
as pessoas brancas de classe média no mesmo barco, de modo que elas se tornaram
vulneráveis à guerra das drogas, por exemplo com a metanfetamina, ou se tornaram
incapazes de qualificar-se para empréstimos para a universidade. E de repente a
fé na máquina econômica, na autoridade econômica de Wall Street e na lógica do
mercado começou a se distanciar das pessoas. E elas perceberam que não se trata
apenas de raça, trata-se de algo ainda mais aterrorizante. Trata-se de classe.
Você está no topo da onda ou está embaixo?
Então,
como isso pode melhorar? Em 1932, melhorou porque eles distribuíram as cartas
de novo e houve uma lógica comunitária para estabelecer que ninguém seria
deixado para trás. Vamos resolver isto. Vamos abrir os bancos. Das profundezas
daquela depressão, um pacto social foi feito entre trabalhador, entre
mão-de-obra e capital que na verdade permitiu que as pessoas tivessem alguma
esperança.
Ou
vamos fazer isso de alguma maneira prática quando as coisas ficarem
suficientemente ruins, ou vamos continuar fazendo como estamos fazendo. E nesse
ponto haverá tantas pessoas paradas do lado de fora desta confusão que alguém
vai pegar um tijolo, porque você sabe que quando as pessoas chegam ao fim
sempre há o tijolo. Espero que escolhamos a primeira opção, mas estou perdendo
a fé.
Outra
coisa que havia em 1932 e que não existe hoje é que algum elemento da vontade
popular podia ser expresso por meio do processo eleitoral em meu país.
O
último trabalho do capitalismo – tendo ganhado todas as batalhas contra a
mão-de-obra, tendo adquirido a autoridade máxima, quase a autoridade moral
máxima do que é uma boa ideia ou não, ou do que é valorizado e o que não é –, a
última viagem do capital em meu país foi comprar o processo eleitoral, a única
via para reformas que os norte-americanos ainda tinham.
Neste
momento o capital efetivamente comprou o governo, e você testemunhou isso
novamente com a derrocada do sistema de saúde em termos dos 450 milhões de
dólares que foram depositados sobre o Congresso, a parte mais danificada do meu
governo, para que a vontade popular nunca emergisse de fato naquele processo
legislativo.
Por
isso não sei o que faremos se não pudermos realmente controlar o governo
representativo que, nós alegamos, manifestará a vontade popular. Mesmo que
todos começássemos a ter os mesmos sentimentos que estou defendendo agora, não
tenho certeza se ainda poderemos efetivá-los, da mesma maneira que pudemos no
auge da Grande Depressão, por isso talvez seja mesmo o tijolo. Mas espero que
não.
(David
Simon é um escritor e jornalista americano e foi produtor-executivo de The Wire. Esta é uma edição de
trechos de uma palestra feita no Festival de Ideias Perigosas em Sydney,
Austrália.)
Tradução:
Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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