Das 859 barragens de rejeitos de minérios no Brasil, 50 possuem algum risco de comprometimento da estrutura de segurança, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM). As três estruturas classificadas com nível de emergência mais alto estão em Minas Gerais: Forquilha III (Vale), em Ouro Preto, a Sul Superior (Vale), em Barão de Cocais e a B3/B4 (MBR), em Nova Lima.
O estado, que ainda vive as consequências dos vazamentos de Mariana, em novembro de 2015, e Brumadinho, em janeiro de 2019, é tratado como uma “bomba relógio” por especialistas e ativistas do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
“Não ficaria surpreso com outro desastre em barragens no Brasil”, lamenta o advogado e químico turco Baskut Tuncak, ex-relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para resíduos tóxicos.
Tuncak integrou uma comitiva do Conselho de Direitos Humanos da ONU que visitou o Brasil no ano passado e ouviu atingidos em Brumadinho, Mariana e na comunidade de Piquiá de Baixo, no Maranhão.
O relatório, produzido ao final da visita e apresentado em setembro por seu sucessor Marcos Orellana, afirma que a mineradora Vale teve uma “conduta criminosa imprudente” no rompimento da barragem do Córrego do Feijão, que causou 272 mortes.
O texto ressalta que a empresa pressionou auditores externos a certificar a estabilidade da barragem e ignorou alertas sobre os riscos em Brumadinho – a exemplo do que havia feito em Mariana.
“Após os desastres de Mariana e Brumadinho, nenhum executivo corporativo da Vale, BHP ou Samarco foi condenado por conduta criminosa, uma farsa judicial que sugere que alguns no Brasil estão, de fato, acima da lei”, denuncia o relatório.
O Brasil de Fato conversou com Tuncak por ocasião dos cinco anos do rompimento da barragem da Samarco em Mariana. O tema da conversa foi a responsabilização de agentes do Estado e da iniciativa privada em crimes dessa natureza. Confira os melhores momentos:
Brasil de Fato: No relatório produzido após a visita ao Brasil, ao citar o vazamento em Brumadinho, você afirma que “é assombroso que um desastre como esse ocorra quatro anos após o rompimento catastrófico de uma barragem envolvendo a mesma empresa, Vale, no mesmo estado, Minas Gerais.” Que medidas você esperava que fossem tomadas pela companhia e pelo Estado para evitar novos rompimentos, e o que observou na prática?
Baskut Tuncak: Essa é uma ótima pergunta. Foi muito chocante o que aconteceu em janeiro de 2019, mas era previsível e evitável.
Aquele desastre ocorreu em uma das várias barragens do país considerada de alto risco. Infelizmente, mesmo na esteira do desastre de Mariana, o Estado não aperfeiçoou sua legislação nem fortaleceu a regulação e os procedimentos para segurança de barragens.
Ocorreu quase o contrário: o risco só aumentou desde então, por meio do afrouxamento de algumas disposições e da permissão para construções de barragens de rejeitos de maneira mais rápida.
Mesmo na esteira do desastre de Mariana, o Estado não aperfeiçoou sua legislação nem fortaleceu a regulação e os procedimentos para segurança de barragens
O que deveria ter acontecido era o fortalecimento das normas, da fiscalização, dos procedimentos, das medidas de prevenção. Infelizmente, tanto da parte do governo quanto da Vale, não foi o caso.
Você participa de missões das Nações Unidas em vários países. O nível de negligência que observou no Brasil é inédito, ou essa é uma situação recorrente em outras partes do mundo?
Problemas em barragens de rejeitos não são exclusividade do Brasil. Outros países que possuem atividades minerárias também enfrentam dificuldades. No entanto, o nível de risco no Brasil está entre os maiores do mundo.
Pelos dados a que tenho acesso, o Brasil é o país que mais tem barragens de alto risco.Considerando a situação das demais barragens no Brasil, você se surpreenderia com a notícia de um novo rompimento?
Baseado no que vi e ouvi em dezembro do ano passado, eu não ficaria surpreso com outro desastre em barragens no Brasil, infelizmente.
Espero, e ouvi alguns rumores, de que mudanças foram feitas após a nossa visita para reduzir os riscos. Porém, há uma questão sistêmica adjacente que é motivo de grande preocupação e que, pelo meu conhecimento, ainda não foi enfrentada: a informação recebida pelo governo [sobre a situação das barragens] é originada nas próprias empresas.
O Brasil é o país que mais tem barragens de alto risco
Essa é minha preocupação central em termos de preservação da integridade dos processos governamentais de regulação e monitoramento das operações, para que desastres como Mariana e Brumadinho não voltem a acontecer.
Se o Estado não impõe as devidas exigências nem fiscaliza corretamente as operações, qual a responsabilidade da Vale e da Samarco?
De fato, a tarefa de proteger os direitos humanos é do Estado. Porém, a situação impõe responsabilidade às empresas, o que inclui as obrigações criadas pelos governos, sob a forma de lei, mas também o cuidado com as pessoas que estão em risco por conta de suas atividades.
Nos dois desastres, de Mariana e Brumadinho, foi possível observar o trauma psicológico. As pessoas lembram claramente do momento em que a barragem colapsou
Cabe também às empresas mitigar impactos sobre os direitos humanos, mesmo na ausência das exigências legais necessárias.
Em certo sentido, é uma responsabilidade compartilhada. Mas, no fim das contas, o que observamos é que os governos precisam garantir a regulação dos negócios em seus territórios.
Você visitou o Brasil mais de quatro anos após o vazamento em Mariana. Que consequências observou na vida das pessoas que vivem na área da bacia do Rio Doce?
Infelizmente, não pude ir pessoalmente até lá, mas me reuni com algumas das famílias e comunidades afetadas. Nos dois desastres, de Mariana e Brumadinho, foi possível observar o trauma psicológico. As pessoas lembram claramente do momento em que a barragem colapsou e até hoje convivem com a lama, lutando para manter sua casa, sua renda.
Essa incerteza sobre os efeitos da exposição a substâncias tóxicas gera muita angústia e exaustão. Infelizmente, isso se mantém até hoje
Há vários impactos que persistem nos modos de vida, na saúde mental das comunidades – especialmente dos indivíduos que perderam amigos e parentes no desastre.
Um dos problemas que não se resolveu é a preocupação das comunidades com a possibilidade de intoxicação por metais pesados, liberados assim que a barragem rompeu. Essa incerteza sobre os efeitos da exposição a substâncias tóxicas gera muita angústia e exaustão. Infelizmente, isso se mantém até hoje.
Tentamos chamar atenção, na nossa visita, para a necessidade de um parecer independente, robusto, que oriente as comunidades sobre os riscos e identifique o que pode ser atribuído ao desastre.
Em relação ao meio ambiente, o que ainda pode ser remediado e o que já se perdeu?
Já se perdeu muito. O que havia de vida selvagem no rio foi imediatamente destruído pela lama. Vegetação, topografia, animais, perda de acesso a água potável.
Além disso, há que se considerar que muitas comunidades foram diretamente atingidas pela lama, como é o caso de Barra Longa (MG).
Alguns desses impactos até podem ser remediados, e há esforços nesse sentido. Porém, parte do problema é justamente a lentidão da implementação desses projetos.
Durante a visita, ouvi de muitas pessoas que os 42 programas de reparação conduzidos pela Fundação Renova [resultado de um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC)] já estavam em fase avançada. Isso é muito preocupante, porque elas ainda vivem sob muitos efeitos adversos, especialmente as comunidades indígenas que dependem muito do rio para subsistência, para manter suas tradições.
Temos exemplos de acordos feitos dentro dos padrões de respeito aos direitos humanos, projetos implementados com tecnologias capazes de minimizar os impactos ambientais
Tudo isso deve ser considerado em uma ação mais coerente e condizente com o que se espera [de um programa de reparação].
Com base na sua experiência em outros países, é possível encontrar boas práticas na mineração, quando essa atividade é liderada por grandes corporações? O problema geralmente é a falta de regulação e controle estatal ou as violações socioambientais são inerentes à atividade em si?
Muitos consideram que a mineração e a indústria extrativista é, em si, insustentável. É uma questão complexa. Em algumas situações, a extração de recursos naturais, de fato, não pode ser feita sem danos a comunidades, sem ferir os direitos humanos – especialmente, quando a própria comunidade não chega a um acordo e se posiciona contra aquela atividade.
Por outro lado, há boas práticas. Temos exemplos de acordos feitos dentro dos padrões de respeito aos direitos humanos, projetos implementados com tecnologias capazes de minimizar os impactos ambientais. Porém, em muitos casos, os impactos são inevitáveis. Especialmente, quando olhamos para o ciclo da indústria extrativista, é muito difícil encontrar uma atividade plenamente sustentável.
No fim das contas, depende de como você interpreta os padrões e as obrigações concernentes aos direitos humanos. Uma das minhas preocupações centrais é por quanto tempo ainda seremos dependentes desse tipo de extrativismo.
Edição: Leandro Melito
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